Não
estamos apenas recolhidos em casa, estamos também recolhidos em nós, avaliando
o que fizemos até aqui e o quanto queremos fazer nos próximos anos.
O agora
ficou lento o suficiente para enxergarmos a nós mesmos . Sempre
nos vimos através do outro, agora o enxergamos através de nós.
Uma nova
consciência surge em tempos tão caóticos. A ilha em que vivíamos e que nos absorveu
está se diluindo e começamos a ressurgir.
Sim, já não somos uma ilha, somos jangadas,
buscando um porto seguro. Uma jangada em mar aberto, recolhendo momentos,
instantes de vida espalhados, flutuando em pequenas boias da lembrança. Recolhidos, enjaulados e a solidão não parece ser mais o pior inimigo, tornou-se aliada.
É na solidão do meu eu que incorporo esses instantes, aceitando que
existem outros reclusos com momentos idênticos, mas que haviam sido esquecidos.
O mar interior está revolto, ondas imensas de saudades nos obrigam a recuar para
poder avançar. Recuamos para abraços passados, beijos distantes no tempo,
risadas, contatos... Ahhh, que falta pode fazer um instante!
E seguimos em
nosso recolhimento interior com os dias, lá fora, passando inexoráveis.
Não há
previsões, não cabem previsões nem lá fora, nem aqui dentro.
Normalidade é uma
palavra que também ficou pra trás, boiando com as recordações. A diferença é
que ela se afasta, não se junta a nada. É como se a normalidade fosse momentos
pontilhados, sem traços definidos.
Penso a respeito e percebo que somente os
momentos vividos com emoção e compartilhamento possuem linhas retas, com espessuras das mais variadas. São reais.
A normalidade pontilhada nunca
existiu além das nossas crenças. Pensei que em momentos de
crise o melhor seria buscar a normalidade. Que grande equívoco!
Não sei quanto
aos outros, mas sinto alívio em ver a normalidade se afastar. É um grande
iceberg em nossa vida . Um iceberg pontilhado sim, mas imensamente pesado. Como
é transparente podemos ver tudo o que há dentro dele: a rotina que odiamos, a
forma de trabalhar que consome as 24 horas do dia, a preocupação exagerada
pelos demais, nossas opções mais ousadas amontoadas sob o tapete do medo, as
opiniões alheias ocupando espaços importantes, baús e mais baús contendo
soluções práticas para agradar a todos, gaiolas de sentimentos controlados e
vigiados, e uma caixa de entrada, dessas de escritório para documentos vindos
de fora, só que imensa, que ora parece cheia e ora vazia.
Numa etiqueta,
colada na frente da caixa de entradas, estava escrito: ama-me! Compreendo que o
amor não é delivery, não aceita pedidos pra pronta entrega, esse tipo de amor
que comporta em uma caixa de entradas é inseguro e inconstante, variando conforme
nossas necessidades: quanto mais precisamos, menos temos e vice-versa, porque o
amor verdadeiro não cabe na normalidade, e não depende das nossas carências.
Quase
cai dessa jangada emoção... Essa é a normalidade que abarcanhava minha vida e
pode estar envolvendo a sua vida agora.
A quarentena segue e nosso recolhimento
também, aliás creio que, terminando o confinamento, poderemos seguir
submergindo para descobrir mais tesouros, desses que nos tornam ricos para o
resto de uma vida louca e feliz.